Texto de Wilson Joel Leal Gasino, novembro 2020

Há alguns anos comprei uma edição muito interessante de um livro com as histórias de terror mais famosas: Frankenstein de Mary Shelley, Drácula de Bram Stoker e O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson. A edição trazia ainda um prefácio muito interessante de outro mestre do terror, Stephen King, fazendo uma análise das três obras e da evolução do gênero através dos tempos.

Stephen King nos aponta que as narrativas de horror falam claramente dos principais medos do seu tempo. No caso de Frankenstein, escrito em 1816, está retratado o receio das pessoas na época de a ciência ultrapassar os limites do humano e desafiar o divino. Em Drácula, de 1897, Bram Stoker faz o movimento contrário e é o obscurantismo místico a ameaça, sendo a ciência, representada pelo dr. Van Helsing, a forma de combatê-lo.

Já o livro de Stevenson, de 1941, explora o lado do psicologismo e as descobertas de que a não somos um todo coerente e homogêneo como seres. Que estamos divididos dentro da nossa psique e há um embate interno entre aquilo que mostramos ao mundo (e o mundo nos cobra posturas) e o universo borbulhante que guardamos lá dentro, muitas vezes até sem sabê-lo ao certo.

Se fizermos uma análise do nosso mundo hoje e do que faz sucesso em termos de terror nas narrativas atuais, fica claro que a grande fantasia negativa que toma conta do imaginário coletivo são os zumbis. Seres que perderam a capacidade de pensar e sentir por si mesmos e, contagiados pela horda, juntam-se à multidão procurando devorar cérebros e transformar o mundo todo em seus iguais.

O próprio Stephen King escreveu sobre esse tema da perda da identidade em meio à massa no livro Celular, embora seus maiores sucessos estejam nas histórias individuais de pessoas, lugares e objetos possuídos por forças externas.

Existem outras linhas narrativas também de sucesso no terror hoje. As histórias apocalípticas em que as máquinas tomam conta do mundo, como em O Exterminador do Futuro e Matrix, por exemplo, são releituras da narrativa do homem ultrapassando os seus limites com a ciência. Mas os zumbis são o maior sucesso e isso absolutamente não é coincidência em um mundo de fake news, terraplanismo, campanhas de descréditos às vacinas etc.

A cultura do cancelamento, funcionando em ondas que remetem aos movimentos dos zumbis é uma marca dos nossos tempos. Não podemos aqui confundir as “shitstorm” com a crítica legítima e fundada, mas, mesmo quem tem razão em determinada questão pode agir como zumbi nas redes quando as coisas entram em frenesi e perdem o controle.

No mundo concreto há uma distância enorme entre um processo correto que corre na Justiça formal e um linchamento. Assim, o justiçamento também pode ser cruel e moralmente abominável no mundo virtual. Mesmo havendo razão no mérito da questão. O risco de uma injustiça é muito alto.

Ninguém quer se imaginar no horror de ter uma horda descontrolada lhe atacando repentinamente, uma multidão com quem você não consegue dialogar e vai se sucedendo como uma onda interminável. É o pesadelo zumbi dos nossos tempos (e pior, podem ser robôs também).

O que pode nos dar clareza da diferença entre um movimento legítimo de defesa de direitos e o linchamento moral é o que move e como se move essa onda. Se ela é gerada por emoções destrutivas ou busca uma real mudança de situação que seja baseada no entendimento, na cura e na regeneração. Na forma de uma pergunta: esse movimento se beneficia da pressa, da pouca informação, de emoções como a raiva incontida ou ele está fundamentado na busca da construção de um sentimento mais perene, fundamentado no esclarecimento dos fatos e que venha a se tornar uma disposição para o bem maior?

Esse cenário nos leva a outro ponto importante: como a questão da narrativa atualmente se relaciona com a governança das empresas. Como relacionar as narrativas das empresas ao que o mundo vive hoje e ajudá-las a enfrentar o risco zumbi.

A construção da governança de uma empresa passa necessariamente por uma boa narrativa. Ela permite unir toda a estrutura, os processos e os controles da administração da empresa num discurso coeso e facilmente assimilável pelos stakeholders em várias formas cognitivas. Ela dá sentido aos dados e informações que não conseguem dar conta de toda a vida real, já que mesmo aquilo que está fora do Big Data tem valor, talvez até o maior de todos.

A narrativa proporciona liga e consistência aos esforços e procedimentos da empresa em toda a sua cadeia de valor. É ela também que dá sinergia, força e propriedade para a busca do propósito. Provê o alinhamento necessário, fazendo com que os olhos se voltem para a mesma direção, fazendo com que o “porquê” se  desdobre em “comos” para a realização dos “o quês” desejados.

É importante destacar que não é a área de Comunicação que constrói essa narrativa sozinha, mas toda a empresa em conjunto, incluindo funcionários, clientes, fornecedores e acionistas. A Comunicação faz a costura dessa narrativa, a definição da linguagem, dos meios e plataformas, unindo todos os pontos, dando harmonia, uniformidade e clareza, traduzindo em formato comunicável. Isso desde a exposição da marca até a maneira como o atendente, lá na ponta, recebe uma demanda do cliente.

A boa narrativa precisa ser articulada, flexível, dinâmica e aberta à evolução, sem o risco de se esfiapar. Precisa ser integrativa, inclusiva e conectada ao que a empresa e a sociedade à sua volta estão pensando e desejando. Precisa estar diretamente ligada à cadeia de valor da empresa, entendendo que não deve falar principalmente de resultados, produtos e serviços, mas de relações com as pessoas e o mundo ao seu redor.

Wilson Joel Leal Gasino

Ela é um apoio para a absorção das melhores práticas e uma forma de ajudar todos a entenderem os maiores riscos no caminho que se desenha. É uma maneira de visualização do planejamento, seus objetivos, metas e estratégias.

Um grande paradigma dessa narrativa é a Jornada do Herói, descrita por Joseph Campbell no seu livro “O Herói de Mil Faces”. Ela precisa levar em conta também os arquétipos de Jung e as influências clássicas que já estão introjetadas no inconsciente coletivo, assim como as referências da cultura pop na qual as pessoas estão imersas.

É uma jornada que sempre começa com um desafio/convite, que muitas vezes não é visto, identificado ou aceito de cara. Mas, ao entender que se trata de uma missão, um verdadeiro propósito, a protagonista – neste caso a empresa – abraça esse chamado e mergulha nele.

Para essa viagem, a narrativa deve deixar claro o objetivo a ser perseguido e os riscos pelo caminho. O pior dos riscos, a derrota, é o perder para os seus próprios erros, não saber lidar com a sua sombra.

Logo nos primeiros passos, a protagonista deve entrar em um outro mundo, um lugar diferente, fora da sua zona de conforto. Lá enfrentará dificuldades diferentes das que estava acostumado e encontrará aliados e ferramentas importantes que o ajudarão nessa caminhada.

Encarar esse novo mundo é necessário, já que não há inovação nem evolução verdadeira se a empresa não sair da sua zona de conforto.

Nessa jornada, a heroína constantemente conta com a figura de um mestre orientador. Há o engano e há também sacrifício nesse caminho. Nada é obtido sem esforço e só a superação coloca a protagonista em um novo patamar de evolução, transformando-a em um novo ente e habilitando-a a conquistar o prêmio prometido.

O tamanho do desafio deve ser proporcional. Se for muito fácil, não tem graça, mas se for muito difícil, pode parecer algo inatingível e a narrativa perde a credibilidade.

Deve haver uma boa dose de mistério, para que as pessoas se sintam curiosas sobre as soluções que a narrativa trará. Se for interessante, útil e trouxer emoções, a narrativa está cumprindo seu papel de prender a atenção as pessoas e deixar a sua mensagem nos corações e mentes.

Precisa gerar um nível de tensão que mantenha as pessoas atentas ao desenrolar da narrativa – não se pode entregar o final antes do tempo, mesmo que as pessoas tentem adivinhar. No spoilers, please.

No final, resta o desafio não menos importante de absorver o que se aprendeu e retornar ao ponto de partida para uma nova jornada. Mas nem a protagonista será a mesma que iniciou a jornada, nem seu mundo de retorno será o mesmo.

E aqui vai uma característica fundamental da boa narrativa: mesmo sendo singular e específica, precisa ser também universal. Isso possibilita que todos se identifiquem, se emocionem e aprendam com ela. Se as pessoas se identificarem com a narrativa, ela vai ficar na memória delas.

Por último, mas não menos importante, a narrativa deve estar aberta à evolução, ao aperfeiçoamento. Precisa crescer junto com a empresa, dialogando com o mundo à sua volta e suas mudanças. Uma história onde o fim é apenas um novo começo e o enredo vai sendo construído a cada dia.

E como se elaboram narrativas para se contrapor às histórias de zumbis de hoje?

Os temas precisam levar em conta questões como respeito às diferenças, tolerância a opiniões diversas, inclusão, diversidade, sustentabilidade e principalmente a importância de se pensar e sentir como indivíduo ao mesmo tempo em que se reconhece parte de um todo sistêmico. E não se pensar e sentir como um ser imerso na multidão se reconhecendo isolado, apartado, só.

É importante lembrar que ter foco não significa reduzir a visão do todo a apenas um ponto. Mas sim reconhecer no quadro geral algo que mais interessa naquele momento para ser examinado em sua relação com o todo.

A narrativa saudável ajuda a olhar, não busca a cegueira. Traz calma, empatia e uma sensação de que, embora haja dificuldades, tudo está no seu lugar, no caminho de ser compreendido, acolhido e curado e que nada pode ter mais valor do que a vida. Porque os zumbis querem devorar os cérebros, nunca os corações.

Wilson Joel Leal Gasino é jornalista e escritor, trabalha como Assessor na Superintendência de Comunicação da Sabesp e é autor dos livros “Distrópicos”, “Impermanências”, “O Reino Místico dos Pinheirais” e “Histórias Sobre Corrupção e Ganância”. Trabalhou em jornais como Gazeta do Povo (Curitiba), Jornal de Londrina, A Tarde (Salvador), Bom Dia Rio Preto e Diário de São Paulo. Em 2020 participou do curso Comunicação para Sustentabilidade da Aberje e gostou muito.

Wilson estará no ODS Talks ABRAPS 2020 convidado de nosso Grupo de Trabalho Cursos no dia 23/11, das 10:00 às 11:30h. Confira a programação completa e inscreva-se em www.odstalks.com.br

As opiniões contidas neste texto são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, as opiniões e posicionamentos da ABRAPS

Narrativa, governança sustentável e zumbis