Lisa Biron
Economista, Pesquisadora e Cofundadora da DATA.ela
Os impactos das crises nunca são neutros em termos de gênero e a pandemia da COVID-19 não é exceção. Embora os homens apresentem uma maior taxa de letalidade, mulheres e meninas são especialmente afetadas por consequências econômicas e sociais – sem contar a própria a alta prevalência de contaminação. Nesse contexto pandêmico, as desigualdades de gênero já existentes se acentuaram de forma geral. Nesta breve análise, procura-se lançar luz sobre tais efeitos, considerando a educação como ponto central.
Por que é importante discutir as desigualdades de gênero a partir dos efeitos da pandemia sobre a educação? Pode-se considerar um momento emblemático: o fechamento das escolas. Isso refletiu sobre a vida de toda a população, mas sobremaneira entre as mulheres: desde a queda abrupta na participação no mercado de trabalho à maior exposição à violência doméstica.
Segundo dados do painel interativo para “Monitoramento de Fechamento das Escolas” , desenvolvido pela UNESCO, mais da metade da população mundial ainda está afetada pelo fechamento parcial ou total das escolas. No ano passado, a pandemia causou a suspensão e o fechamento das escolas, afetando 1,6 bilhão de estudantes em mais de 190 países. Com a segunda fase de contaminações em massa do vírus, cerca de um bilhão de alunos continuam sem aulas presenciais. No Brasil, aproximadamente 53 milhões de alunos seguem afetados, mesmo após a abertura parcial das escolas.
O fechamento de escolas e creches impactou diretamente as mães que precisavam trabalhar, mas não tinham com quem deixar os filhos – condição mais severa foi percebida entre as famílias monoparentais chefiadas por mulheres e/ou com crianças menores de 12 anos (Alon et. al., 2020; UN, 2020). Independentemente da maternidade, os cuidados com idosos e doentes também sobrecarregam as mulheres. De acordo com os dados da Pnad-C, em 2019, o número médio de horas semanais dedicadas por mulheres era quase o dobro do tempo dos homens – 21,4 horas frente a 11 horas (DATA.ela, 2021).
A crise sanitária e econômica da COVID-19 se revelou fortemente sobre o mercado de trabalho em 2020. Tais efeitos foram percebidos de forma diferente entre homens e mulheres. Para elas, a queda na participação na força foi sem precedentes, a menor desde os últimos 30 anos. Os dados da Pnad-C, referentes ao quarto trimestre de 2020, apontam que as mulheres representavam 64% das pessoas fora da força de trabalho (DATA.ela, 2021).
Entre os motivos de estar fora da força, a pandemia foi o terceiro motivo mais frequente para não a não procura trabalho – correspondente a 11,8 milhões de pessoas. Além da pandemia, um dos principais motivos para não procura foram os afazeres domésticos e cuidados com familiares. Segundo dados da Pnad-COVID, 9,9 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da necessidade de cuidar da casa ou de parentes: 95,5% eram mulheres – sendo 57,9% mulheres pretas ou pardas e 37,6% mulheres brancas.
A situação das mulheres pretas ou pardas é ainda mais desafiadora no mercado de trabalho: além de obterem os menores rendimentos, elas estão entre a maioria das desocupadas, informais e no trabalho doméstico – onde representavam 61% de pessoas ocupadas nessa posição. Vale ressaltar ainda que o trabalho doméstico foi a posição com maior variação na ocupação, na comparação dos quartos trimestres de 2019 e 2020 – com queda de 23%, levando 1,5 milhão de pessoas para desocupação (DATA.ela, 2021) .
O trabalho docente também reflete desigualdades de gênero, especialmente pelo trabalho doméstico e reprodutivo. Segundo Campos e Vieira (2021) , o excesso e a precarização do trabalho docente acontecem em um contexto doméstico privado, onde outras tarefas de reprodução precisam ser feitas e os momentos de descanso devem acontecer. O estudo revela, Silva e Fisher (2020), que em geral as professoras mulheres têm maior chance de ter sua vida privada invadida por seu papel profissional, condição agravada pela pandemia.
O aumento da carga de trabalho, com planejamento de aulas e manuseio de tecnologias para educação à distância, implicou em aumento de stress e comprometimento da saúde mental. “incerteza quanto ao futuro, medo de adoecer e perder o emprego e a renda, angústia” também foram sentimentos frequentemente apontados por docentes durante a pandemia (Campos e Vieira, 2021).
De forma geral, a perda de emprego e a queda na participação na força de trabalho implica imediata restrição de renda. A pesquisa “Impactos primários e secundários da COVID 19 em Crianças e Adolescentes”, realizada pela Unicef em parceria com IBOPE Inteligência, revelou que 64% da população brasileira com 18 anos ou mais estavam trabalhando antes da pandemia de COVID-19, ao passo que no momento da realização da pesquisa, entre 03 e 18 de julho de 2020, a proporção era de 50%. Mais da metade desses entrevistados declararam um decréscimo na sua renda familiar durante o período da pandemia – proporção que chega a 63% entre os que residem com crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos. Um quarto deles havia recebido apenas metade de sua última renda no mês anterior à pesquisa.
De acordo com dados da ONU Mulheres e PNUD , como resultado da pandemia da COVID-19, a população extremamente pobre poderá aumentar em 96 milhões de pessoas até 2021, 47 milhões das quais são mulheres e meninas. Isso aumentará o número total de mulheres e meninas que vivem em extrema pobreza para 435 milhões, com projeções mostrando que, até 2030, só conseguirá reverter esse número em níveis anteriores à pandemia. No Brasil, as estimativas apontam que serão necessários 24 anos para eliminar as diferenças de gênero na pobreza.
Para falar sobre pobreza no Brasil, além de considerar as dimensões gênero e raça, é necessário um olhar sobre as crianças. Aqui, a pobreza infantil é proeminente. Segundo ABRAPS (2020) , cerca de 11% das crianças (0 a 14 anos) viviam em famílias com renda inferior a R$ 150 per capita (valor próximo à linha de US$ 1,90 por dia per capita, em dólares medidos por paridade do poder de compra).
Com a renda mais restrita, a segurança alimentar também passou a ser uma questão absolutamente relevante e se intensifica, ainda mais, ao considerar que as crianças e adolescentes que, antes tinham acesso à merenda e demais refeições na escola, passaram a necessitar desse acesso no próprio domicílio. Isso se refletiu não só nos hábitos alimentares, como na própria privação à nutrição. Segundo a pesquisa da Unicef , com IBOPE Inteligência, mais de 27% dos que moravam com crianças e adolescentes relataram momentos em que não havia mais alimentos disponíveis e não tinham dinheiro para comprar mais; 8% disseram não comer uma refeição por falta de dinheiro (UNICEF, 2020). Os resultados da pesquisa também indicam uma mudança os hábitos alimentares durante o período de Covid-19 no Brasil, com aumento no consumo de alimentos industrializados.
Segundo as autoras Campos e Vieira (2021) , as escolas puderam usar recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar para distribuir alimentos aos alunos durante a pandemia: aproximadamente 66% dos municípios entregavam alimentos para as famílias das crianças na escola e 21%, na casa dos alunos. Todavia, menos da metade declarou (44%) incluir todos os seus alunos nesses programas durante a pandemia. Uma das possíveis razões para não alcançar a cobertura total, apontada pelo estudo, pode estar associada limitação fiscal, tendo em que o programa federal cobria apenas de 54% desses custos.
As desigualdades sociais podem ser vistas de diferentes formas, e o acesso à educação, sendo um direito social de toda população, pode refletir de forma evidente os impactos da pandemia. Oliveira e Pereira Junior (2020) ressaltam que as desigualdades são indissociáveis da educação – destacando a fragmentação da oferta escolar a partir da infraestrutura das escolas: “aos mais pobres são oferecidas escolas mais pobres, ou seja, condições mais precárias de oferta educativa”. Desse modo, é intuitivo compreender que as condições de oferta da educação remota não são as mesmas para todos, considerando a oferta desigual em termos de acesso a fatores como recursos tecnológicos, apoio pedagógico, suporte à nutrição, entre outros.
De acordo com estudo “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2020”, realizado entre os meses de julho e novembro de 2020, em média, 1,6 milhão de crianças e adolescentes de até 17 anos de idade informaram não estar estudando no período da pesquisa. As médias mais concentradas de indivíduos nesta faixa etária, não estudando, estão entre as crianças de até seis anos e entre os adolescentes de 15 a 17 anos. Estas proporções são ainda mais concentradas entre os indivíduos que residem em domicílios cadastrados no Programa Bolsa Família (PBF), em todos os grupos etários. Entre crianças e adolescentes de que residiam em domicílios com renda mensal per capita de até meio salário-mínimo, em média, 27,3% das crianças e adolescentes não acessava a internet através de qualquer equipamento. O estudo revelou também desigualdades raciais acentuadas nas condições necessárias para o acompanhamento de aulas remotas – tanto em relação à distribuição de material quanto no acesso à tecnologia (ABRINQ, 2021) .
Em relação à segurança de meninas e meninos, “as escolas e creches não só fornecem educação e alimentação regular, mas também podem proteger as crianças de abusos e violência no ambiente familiar” (Campos e Vieira, 2021) . A transferência de fundos para a resposta à pandemia está dificultando o acesso das mulheres ao sexo e saúde reprodutiva. Relatórios de violência contra mulheres aumentaram em todo o mundo, à medida que orientações de isolamento social (e a consequente permanência em casa) forçam as mulheres a se abrigarem no local com seus abusadores, muitas vezes com consequências trágicas.
Para finalizar a discussão em torno da educação na pandemia e seus possíveis efeitos sociais, cabe fazer referência ao discurso do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em que ressalta: “a educação é fundamental para ampliar oportunidades, transformar economias, combater a intolerância, proteger o planeta e cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. À medida que o mundo continua a lutar contra a pandemia, a educação, como um direito fundamental e um bem público global, deve ser protegida para evitar uma catástrofe geracional”. Para Guterres, este ano de 2021 é o momento de reverter este quadro e garantir a reposição total do fundo da Parceria Global para a Educação e fortalecer a cooperação educacional em nível mundial .
É preciso ampliar o debate sobre os efeitos da pandemia sobre a educação, levando em conta as desigualdades sociais e de gênero, e temas transversais: saúde, educação, geração de trabalho e renda, segurança alimentar e violência. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável oferecem metas e diretrizes voltadas à igualdade de oportunidades para o mundo. É hora de utilizá-los como farol e guia para alcance de educação de qualidade, como ferramenta de transformação social, garantindo um futuro seguro, saudável e inclusivo para as famílias.
28 de abril – Dia Mundial da Educação
Em continuação ao tema “Pandemia e Educação”, ABRAPS e DATA.ela farão um debate, com transmissão ao vivo, às 19h.
No dia 28 de abril, às 19h, a ABRAPS irá realizar um debate sobre os impactos da Pandemia na Educação Infantil, em parceria com DATA.ela – a recém-lançada plataforma de visualização de dados e análises de gênero, representada por suas cofundadoras, Kelly Miranda e Lisa Biron. O encontro contará com a participação das pesquisadoras Anelise Nascimento e Sandra Cavaletti Toquetão. Anelise é Professora do curso de Pedagogia da UFRRJ, com Pós-Doutorado em Educação (UFF/2019) e autora da pesquisa em andamento “Educação infantil, pandemia e ações dos Municípios da Baixada Fluminense”. Sandra é Doutoranda em Ciências Sociais e Coordenadora Pedagógica da Prefeitura de São Paulo, além de Pesquisadora do Grupo Políticas Públicas da Infância – PUC-SP e Linguagem em Atividade no Contexto Escola (LACE – PUC-SP). Acompanhe pelo YouTube oficial da ABRAPS.