Uma iniciativa do GT Visão, por Norma Gonçalves.

Na posição de último país a abolir a escravidão, o Brasil em 13 de maio de 1888 assina o decreto que libertava as pessoas escravizadas. O que não é mencionado na história, é o que aconteceu no dia 14 de maio de 1888, onde o negro livre estava sem acesso à educação, saúde, trabalho e salário digno, oportunidade e de frente para o racismo, preconceito e exclusão, e isso tem permanecido até os dias de hoje. Para nos aprofundarmos neste assunto, o GT Visão da ABRAPS convidou Amanda Costa, Camila Andrade e Paula Batista para um bate-papo exclusivo.

Amanda Costa é ativista climática, jovem embaixadora da ONU, delegada do Brasil no Y20 e em 2021 entrou para a lista #Under30 da revista Forbes.

Segundo Amanda, por muito tempo foi evitado falar do racismo estrutural por ser um assunto que gerava desconforto. Porém, esse tema deve ser dialogado por todos por mais que cause desconforto, afinal o Brasil é um país racista com barreiras invisíveis que impede o acesso dessa temática de forma ampla. Sendo assim, é preciso que nós evidenciemos o trabalho das pessoas negras para que as bolhas sejam rompidas.

Na visão da Camila, já na base educacional é preciso discutir a luta negra, uma vez que nos é ensinado uma história única, que é contada pelo lado vencedor, onde os heróis são as pessoas brancas. Essa narrativa foi passada e estruturou a sociedade em formato neocolonialista, que é permanecido até os dias de hoje.

Camila Andrade é Mestre em Relações Internacionais e pesquisadora de Cooperação Internacional e Estudos Africanos.

Para Paula, é preciso evidenciar as pessoas que de fato foram responsáveis pela abolição, afinal, a luta abolicionista não começou nem terminou com a princesa Isabel. Os negros escravizados na época fizeram diversos movimentos, revoltas e ações para pressionar as autoridades a assinarem a abolição. Mesmo assim, essa luta negra não é ensinada na escola. Outro ponto que devemos mencionar é que com a abolição nada foi garantido aos negros livres, inclusive a proposta de Luis Gama era de realizar a divisão de terras e fornecer condições de sobrevivência, só que o corrido foi o contrário: foram criadas leis para dificultar a vida dos negros livres e isso é refletido até hoje em nossa sociedade.

Nesse contexto da evidência da luta negra, a morte de George Floyd comoveu o mundo e o movimento black livers matters ganhou muita força e destaque. Por um outro lado, nesse mesmo período houve muitas mortes de pessoas negras no Brasil, inclusive de crianças, sem mencionar o caso de João Eduardo no Carrefour. Porém, os casos do Brasil não ganharam tanta evidência quando comparados à ocorrência nos Estados Unidos, o que mostra que a população brasileira não se mobiliza tanto quanto quando a causa vem de países estrangeiros.

 Paula Batista é educadora, pesquisadora e consultora de educação antirracista.

A Amanda destaca que muitos brasileiros compram o discurso exterior e apenas reproduzem o que é feito por lá, e nesse recorte é visto muitos brasileiros sem a consciência de raça, cor e de gênero, e que muitos assuntos e temas do racismo estrutural não permeiam a bolha das pessoas brancas, ricas e elitizadas. Sendo assim, é preciso olhar toda a estrutura e não somente quem está na ponta. É preciso articular a pauta com todos, seja com acadêmicos, pessoas da favela ou uma empregada, e só assim iremos conseguir expandir a visão e quebrar as barreiras e muros sociais.

A Camila pontua os estudos da Lélia Gonzalez onde ela menciona a importância de olhar a ancestralidade, valorizar a cultura africana e indígena que temos no Brasil, sem deixar de visualizar a existência de dois tipos de racismo: o racismo institucional, que é aquele praticado de forma clara e visível como é feito nos Estados Unidos, e o racismo silencioso, que é a prática do Brasil, baseado no mito da democracia racial onde as pessoas afirmam que não existe racismo devido à miscigenação, e por isso os eventos de luta contra o racismo não ganham força.

A Paula comenta que muitas das vezes é dito de boca para fora o “vidas negras importam”, uma vez que poucas pessoas se mobilizam na causa, e é mais fácil ver muito mais pessoas mobilizadas com a morte de um cachorro. O ponto chave é que as pessoas negras estão lutando desde 14 de maio de 1888 para sobreviver, já que vivemos em um país de Marielles, onde os negros brasileiros irem para a rua significa que podem ser assassinados. Mediante a isso, o movimento negro criou uma forma de luta e de resistência, que aos poucos tem ganhado espaço nas mídias digitais, já que a mídia hegemônica não cobre o movimento negro. A cobertura do movimento negro do Brasil tem uma reportagem de dois minutos, enquanto nos Estados Unidos há uma cobertura ao vivo, sendo assim, temos que cobrar a mídia para mostrar a nossa luta.

O Brasil de fato é um país violento e desigual para as pessoas negras. Segundo a Globo News, 79% das pessoas mortas em 2020 pela polícia, foram as pessoas negras e a desigualdade social afeta em grande parte a população negra que continua sem acesso. Aqui o questionamento é o que pode ser feito pelo governo, pela população e pelas pessoas brancas.

A Amada destaca que nesse contexto é preciso olhar em três níveis: individual, coletivo e político. No nível individual, temos que começar a consumir o conteúdo de pessoas negras, no coletivo é mobilizar comunidades e não somente no bairro onde mora, mas sim nas empresas pressionando a liderança e o RH para criar espaços para pessoas negras na posição de tomada de decisão. Por último, no nível político temos que votar com consciência, acompanhar políticas públicas e votar em pessoas pretas, afinal os nossos representantes políticos são homens brancos que consequentemente vão legislar para as pessoas brancas e o resultado são as práticas racistas e machistas sendo reverberadas. A única forma que temos para abalar a estrutura e quebrar o status quo é através da política, já que a mudança na política é capaz de ampliar essa transformação.

A Camila diz que a educação é a potência de transformação, inclusive para criar espaços de diálogos e as pessoas brancas começarem a criar essas oportunidades para que as pessoas negras tenham voz de fala. A consciência política deve fazer parte da via do negro, mas principalmente dos brancos, já que eles podem fazer a diferença em todo o processo de instrumentalizar a informação para que chegue em pessoas e lugares diferentes.

A Paula acrescenta que as pessoas brancas precisam entender que em uma sociedade racista não há escolha de você ser racista ou não, nós aprendemos o racismo desde criança com o aceso às mídias, com o que ensinado na escola e os espaços que frequentamos. Sendo assim, ou as pessoas entendem de uma vez por todas e se comprometam em se tornar antirracistas ou continuaremos na teoria, como dizia Angela Davis “numa sociedade racista não basta não ser racista, temos que ser antirracista” e o antirracismo está ligado à ação, não tem como falar que é antirracista em uma situação passiva. É preciso agir.

Afinal, o que é ser antirracista? É propor conversas, entender que sou racista, enxergar meu comportamento, minha fala, ambientes que frequento, a tv que assisto, perceber nas conversas a presença do racismo, parar de negar o racismo e enxergar com responsabilidade esse dilema da sociedade. Quando conseguimos enxergar conseguimos propor ações, questionar e cobrar dos lugares que financiamos, observar onde nosso dinheiro está sendo colocado, se estamos financiando empresas, produtos e lugares que não estão olhando a pauta antirracista, promover diálogo na família entre amigos e no happy hour e principalmente falar de racismo onde não há negro. Conseguimos enxergar que não há presença de negros quando nos comprometemos com o comportamento antirracista e só assim os outros desdobramentos começarão a vir.

Metade da população brasileira é negra e a presença dessa população não está nas universidades nem nas empresas na posição de liderança, o que não é uma coincidência. Com isso podemos evidenciar a importância de estudar a cultura negra não como um ponto de vista da escravidão e sim da cultura e luta. Na pauta educacional, a Paula comenta que há duas leis brasileiras, a 10.639 e 11.645, e essas leis obrigam que todas as escolas públicas e privadas façam o ensino da cultura negra, afro-brasileira e indígena em todo o currículo escolar, porém muitas escolas não cumprem a lei, o que é um crime. Algumas escolas não sabem nem da existência dessas leis, que estão em vigor desde 2003. Outras aplicam apenas em datas comemorativas, como 19 de abril e 20 de novembro, ou pior ainda, em comemorações de festa junina, onde são abordadas figuras tradicionais e outras dão aula de capoeira como atividade extracurricular e dizem aplicar a lei. Se temos uma educação racista, precisamos de comprometimento com essa educação e com essas leis para que haja oportunidade de dialogar e que os pais cobrem das escolas o ensino antirracista.

A Camila acrescenta que a educação é a ferramenta de transformação e há poucos estudos e dados sobre a África fora do contexto fome, miséria e exploração. Essa falta de informação a levou até Ruanda, já que falta literatura sobre o continente africano inclusive dentro da grade curricular do curso de Relações Internacionais. Há livros que falam sobre a África de forma homogênea e muitas das bibliografias estão em inglês ou francês, e isso foi o que a motivou a estudar Ruanda, para estudar as suas raízes, conhecer a história da sociedade, ter proximidade e coletar dados, pois não há dados disponíveis no Brasil.

Após essa discussão, pudemos observar o quanto é fundamental a pauta antirracista em todos os lugares, com todas as pessoas, afinal, temos que caminhar juntos sem deixar nenhum para trás. Só assim conseguiremos atingir uma sociedade justa, com oportunidades e acesso para todos.

Acesse, assista na íntegra e compartilhe esse bate-papo com a Amanda, a Paula e a Camila através do canal oficial no YouTube da ABRAPS, pelo endereço: https://www.youtube.com/watch?v=zCKiPrg8bw4.

132 anos da Lei áurea: o que não mudou