Texto de Vinicius Botelho, novembro de 2020

Ainda que a comparação internacional sugira que o Programa Bolsa Família seja exemplarmente capaz de chegar aos mais pobres, como o Banco Mundial documentou nos relatórios Safety Nets de 2015 e de 2018, dados da PNAD Contínua de 2019 sugerem que aproximadamente 1/3 dos domicílios elegíveis ao Programa não são beneficiários dele. Precisamos encontrar formas de identificar essas famílias e atribuir os programas sociais a que elas têm direito o mais rápido possível.

Além dos erros de exclusão, comumente chamam a atenção no debate público os indicadores brasileiros de pobreza infantil. Segundo dados da PNAD Contínua, em 2019, 11,4% das crianças (0 a 14 anos), 7,4% dos jovens (15 a 29 anos), 5,5% dos adultos (30 a 59) e 1,5% dos idosos (60 anos ou mais) viviam em famílias com renda inferior a R$ 150 per capita (valor próximo à linha de US$ 1,90 por dia per capita, em dólares medidos por paridade do poder de compra). Com esses dados, fica claro que pobreza e faixa etária estão intimamente relacionados e que a pobreza infantil é um problema bastante sério no Brasil.[1]

Das 11,4% de crianças vivendo em famílias com renda inferior a aproximadamente R$ 150 per capita, 6,4% têm renda inferior a R$ 89 per capita, e ¾ delas são beneficiárias do Programa Bolsa Família, que já tem instrumentos para garantir que nenhuma família beneficiária tenha rendimentos inferiores a esse patamar (por meio de seu Benefício de Superação da Extrema Pobreza).[2]

Provavelmente, os dados cadastrais dessas famílias não estão representando adequadamente a sua situação socioeconômica, o que faz com que essas famílias estejam ainda mais próximas da miséria por conta desse problema de representação.

A implantação do Auxílio Emergencial também mostrou que não há soluções fáceis para o cadastramento de famílias para o recebimento de benefícios sociais. Apesar de ter sido uma solução importante para a crise econômica causada pela pandemia, o seu grau de judicialização, que envolveu mais de setenta mil processos,[3] assim como seus erros de focalização, foram bastante significativos. Portanto, há pouco sentido em insistir com essa estratégia de cadastramento das famílias quando o Auxílio deixar de existir.

Manter um cadastro que identifique as famílias pobres e mantenha a informação dessas famílias continuamente atualizada é um desafio enorme. O Cadastro Único de Programas Sociais, o registro responsável pelos dados do Programa Bolsa Família, tem essa missão. Contando com uma rede de quase 50 mil trabalhadores espalhados nos governos federal, estadual e municipal, ele é o instrumento que permitiu que o Brasil tivesse uma das melhores posições mundiais nos rankings que avaliam a nossa capacidade de combate à pobreza.

São os dados do Cadastro Único que permitem que tenhamos um contingente de aproximadamente 14 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, representando mais de 40 milhões de pessoas. Isso equivale a 20% da população brasileira.

A vulnerabilidade dessa parcela da população é tão grande que uma transferência mensal média de R$ 190 por família (não por pessoa, mas por família) é capaz de gerar impactos positivos em indicadores das mais diversas áreas, como saúde, nutrição e escolaridade, como já amplamente documentado na literatura acadêmica do Brasil e do exterior. Esses resultados são evidência de que a focalização da política social brasileira tem muitos méritos.

Vinicius Botelho

No entanto, os desafios discutidos neste texto mostram que precisamos de mais. Seja para diminuir os erros de exclusão da política pública, para melhorar a caracterização socioeconômica das famílias com crianças ou para dispor de um retrato socioeconômico mais preciso de uma parcela maior da população brasileira, incluindo não só as famílias pobres mas também as famílias vulneráveis, que podem precisar da rede de proteção social em momentos de crise como o que estamos vivendo agora.

É preciso a integração dos dados de registros públicos e privados para identificar famílias que caiam em situação de vulnerabilidade extrema, para atribuir a essas famílias o mais rápido possível os benefícios sociais a que elas tenham direito, não deixando ninguém para trás.

Vale destacar que os dados não são só importantes para identificarmos as famílias mais pobres e atribuirmos a elas uma rede de proteção social mínima. Os dados também são instrumento essencial para pensarmos em políticas públicas que tenham como objetivo promover a superação permanente da pobreza. Afinal, na transferência de renda estamos discutindo, na maior parte das vezes, como a pobreza pode ser aliviada. Por mais meritória que essa ação seja, ela muitas vezes é insuficiente para garantir que as famílias de baixa renda efetivamente se emancipem dessa situação, razão pela qual é preciso pensar em programas complementares à transferência de renda.

Para orientar esses programas, a inteligência trazida pelos dados é fundamental. Cada uma das pessoas do nosso contingente de 40 milhões de pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família é pobre não só pela carência de dinheiro, mas também por conta de várias outras dimensões: essas famílias sofrem carências e privações em diversos aspectos da vida ao mesmo tempo. Por isso, muitas vezes é difícil traçar estratégias efetivas para a superação da pobreza. Precisamos de dados para aprimorar as nossas capacidades de diagnóstico sobre as razões pelas quais as famílias são pobres para, com isso, pensarmos em políticas públicas de emancipação mais efetivas.

Contudo, esse desafio está longe de ser simples.

Pouca gente imaginaria que teríamos mais de mil medalhas da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) distribuídas para jovens beneficiários do Programa Bolsa Família.[4] Ganhar uma medalha na OBMEP significa ser capaz de vencer milhões de outros estudantes na mesma faixa etária, feito que alguns dos jovens beneficiários do Programa Bolsa Família repetiram duas, quatro, seis vezes!

Como um jovem medalhista da OBMEP ainda pode ter dificuldades em superar a pobreza e se emancipar de um programa social? Precisamos de estratégias para identificar não só as vulnerabilidades, mas também os talentos. Afinal, a identificação de talentos pode ser um instrumento poderoso para o combate de preconceitos e desigualdades.

Essa realidade nunca teria sido descoberta se não tivesse sido possível cruzar os dados do Cadastro Único de Programas Sociais com os dados de vencedores da OBMEP. Quantas outras realidades deixamos de conhecer por não termos cruzado os dados disponíveis?

Não podemos deixar ninguém para trás na oferta de serviços básicos de proteção social que permitam o alívio das condições de pobreza. Para isso, precisamos identificar essas pessoas e caracterizar corretamente a sua situação socioeconômica. Não podemos deixar ninguém para trás na busca pela emancipação da pobreza e pela realização dos talentos que a pobreza esconde, e sufoca. Nesse sentido, os dados são um instrumento único, que pode nos deixar mais perto de atingir esses objetivos.

Vinicius Botelho é Sócio da BRCG e ex-Secretário do MC e MDS e estará no ODS Talks ABRAPS 2020 convidado de nosso Grupo de Trabalho Inovação no dia 24/11, das 18:30 às 20:30h. Confira a programação completa e inscreva-se em www.odstalks.com.br

 

As opiniões contidas neste texto são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, as opiniões e posicionamentos da ABRAPS


[1] https://blogdoibre.fgv.br/posts/transferencias-de-renda-resolvem-muitos-problemas-sociais-mas-nao-todos

[2] https://blogdoibre.fgv.br/posts/um-enigma-nos-dados-de-pobreza-infantil

[3] https://www.ajufe.org.br/imprensa/noticias-covid-19/14542-76-mil-brasileiros-ja-ingressaram-na-justica-federal-para-reconhecimento-do-auxilio-emergencial

[4] https://blogdoibre.fgv.br/posts/historias-surpreendentes-em-um-pais-desigual

A importância dos dados para a Inclusão Social